HISTÓRIAS DA ILHA
O Quilombo Ilha de São Vicente
Palestra de Fátima Barros
durante encontro de pesquisadores na Ilha
16 de Agosto de 2019
Aqui é a Comunidade Quilombola Ilha de São Vicente. Nós estamos nesse território desde 1888. Eu estou falando de uma história que começa no Brasil Colônia. A gente já estava aqui quando a lei Áurea foi assinada. Meus antepassados ganharam esse território justamente em decorrência da Lei. No início vieram para cá quatro pessoas de minha família, quatro Barros. Essas foram as quatro primeiras pessoas que pisaram os pés na Ilha de São Vicente, que moraram na Ilha de São Vicente, que ocuparam a Ilha de São Vicente em decorrência do processo de libertação dos escravos. Esses quatro que primeiro vieram tinham uma rotina de trabalho. Fizeram as casas, sempre na beira do rio, e a gente continua com a mesma ocupação da época do meu tataravô. E viveram aqui todos eles. Meu bisavô morreu aqui, meu tataravô, meu avô, minha avó, eles todos viveram aqui nesse local. E tem uma segunda família, os Noronhas. Eles vieram do mesmo processo migratório. Eles passaram pela mesma diáspora. Foram sequestrados em África, trazidos para o trabalho escravo no Brasil e comprados em Carolina, no Maranhão. Vieram para Araguatins essas oito pessoas de África. Então dessas oito, quatro constituíam a família Barros, que é a minha família, e quatro formavam a família Noronha, que é a segunda família que compõe a Ilha de São Vicente. Os Noronhas, no processo da libertação, não vieram inicialmente para a Ilha. Eles foram para o lado de lá do rio Araguaia, para o território pertencente ao Pará. Depois, com o passar dos anos, ocorreram casamentos entre as famílias Barros e Noronha. Então a gente passa a ter pessoas com o sobrenome Noronha Barros. O território quilombola que ficava do lado do Pará, habitado pelos Noronhas, era uma extensão do nosso território. Foi a gente que, na hora regularizar o reconhecimento de nossa identidade optamos por não pedir a retomada do território do Pará. A origem da família Barros também perpassa pelos ancestrais indígenas, ocupantes originários do território, que eram os Araras e os Curi Araras. Eles ocupavam toda essa região da costa do sul do Pará. O encontro entre africanos e indígenas garantiu a continuidade da família. O meu bisavô se casou com uma indígena da nação Arara, depois meu avô se casa com uma descendente dos Apinajés. O Bico do Papagaio é originalmente um território indígena. Por conta da violência e da exploração relacionadas com a luta pela terra as pessoas tendem a recusar a ancestralidade indígena. Mas na realidade todo mundo aqui também é índio. Quem não tem sangue indígena nas veias, tem nas mãos, pela omissão. Então, assim, todos nós, de alguma forma, perpassamos essas identidades que são misturadas, ramificadas. No entanto é preciso entender esse contexto a partir da perspectiva de nossa singularidade, que é uma singularidade quilombola. E a gente sempre busca fortalecer a percepção dessa identidade, mesmo com as muitas angústias e sofrimentos gerados pela revivescência das nossas diásporas.
.A constituição de 1988 e a sociedade
A Constituição Federal do Brasil, no artigo 68 das disposições transitórias, é clara quanto à questão dos quilombos. O governo brasileiro é obrigado a identificar e titular os territórios ocupados pelos remanescentes quilombolas. Portanto o quilombo é definido em lei, então é importante que as pessoas saibam disso porque tem havido muito debate decorrente da ignorância a respeito dessa lei. E a gente não pode ficar de fora desse debate, porque nós, quilombolas, somos os sujeitos, nós existimos. Quando alguém fala que esse quilombo não existe, então é o mesmo que dizer que não existem os sujeitos. Se você negar a existência dessa comunidade, você nega o direito da tia Das Luz, você nega o direito das netas, você nega o direito dos filhos, você nega o direito da comunidade. Em primeiro lugar, nós não somos sobreviventes, nós somos guerreiros. E quando em 2019 eu me levanto para vocês e falo, “eu sou uma mulher negra, sou uma mulher quilombola e sei o meu papel”, isso é uma vitória. Apesar de tudo o que o povo negro passou - e nós passamos por muita coisa, porque fomos roubados das nossas casas, fomos sequestrados, atravessamos os mares dentro do calabouço de navios negreiros, fomos expostos nos pelourinhos, nossas roupas foram arrancadas, nossa humanidade foi levada ao chão - nós sempre resistimos. A gente resistiu para entrar no navio negreiro, a gente resistiu quando nós colocamos os pés nesta terra, a gente resistiu quando Zumbi levantou e disse: não, a gente não faz acordo com a coroa, porque esse governo não vai respeitar esse acordo. A gente resistiu no povo de Zumbi e a gente é povo de Zumbi. Por que isso é tão importante? Porque se eu não alimentar essa parte histórica, se eu não alimentar meu povo com a história que ele viveu, talvez eu possa ser apenas uma pedagoga como outra qualquer. Talvez eu possa ser uma mulher negra como outra qualquer, que acha que as condições de vida do povo negro são decorrentes de fatores sociais abstratos. A história do nosso quilombo é recente, tem 130 anos, mas ao mesmo tempo é uma história de 500 anos porque é a história do Brasil. É uma história recente frente à história milenar da África, mas essa é a história do nosso povo. O Brasil tem uma “tradição” de negar os direitos, de não se relacionar com as coisas que ele diz que sofreu e que não quer assumir. Então chegamos até a ouvir que não existiu esse processo da escravidão, que “não foi desse jeito”, que as pessoas se davam bem, era isso, era aquilo, tinha democracia. Nunca existiu democracia racial não, o que existia era um senhor que nos sujeitava, que nos obrigava a tudo e a todos os seus caprichos. E foi em cima dos nossos corpos, em cima dos corpos das mulheres negras, que tudo isso foi construído. Então a gente tem sim que se levantar e dizer que a escravidão existiu; a gente tem que se levantar e dizer que a ditadura existiu; a gente precisa lidar com isso. Porque eu fico indignada quando penso o que minha mãe sofreu, quando penso o que as minhas tias sofreram, quando eu penso no tanto que minhas avós e bisavós sofreram. Só me levanto aqui porque outras mulheres negras, antes de mim, se levantaram também. Então eu estou aqui e sou fruto disso. Todos os dias eu sofro a guerra, mas eu sou a guerra e eu faço a guerra. Nunca na minha vida eu vou recuar no direito da minha família e isso é fazer a guerra, porque a gente não aceita as coisas passivamente. Nós somos sujeitos das nossas narrativas. Falar é um direito nosso. Meu povo precisa abrir a boca e falar de todas as coisas que já sofreu e ainda sofre, porque não é fácil levar essa vida que a tia Das Luz está levando aqui. Não é fácil você levantar e ir para o remo, não é fácil você levantar e ir quebrar coco, não é fácil você levantar e carregar água desde lá debaixo do rio, não é fácil você não ter um agente de saúde aqui. Para conseguirmos energia elétrica foram cinco anos fazendo projeto e desfazendo projeto. Então cada coisinha que nós conquistamos é na luta mesmo. Infelizmente o tio Salvador não viveu para ver o título da nossa terra, mas ele soube que nem um dia das nossas vidas nós vamos recuar de exigir o título definitivo, imediato, do nosso território. Porque isso é a garantia do bem viver para os nossos familiares, é a garantia de que os que vierem depois de mim terão direito à terra. Se a gente não lutar nesse sentido a gente fica sem o território. Quando digo que sou quilombola, por exemplo, e sou solicitada por algum professor para conversar com alunos, ir lá dançar e cantar, a sociedade até aplaude, mas na hora em que a comunidade diz “a gente tem direito ao território, a gente tem direito a uma vida digna, a gente tem direito à saúde, a gente tem direito à faculdade, igual todo mundo”; na hora em que a gente fala isso, aí sim a gente começa a incomodar a sociedade.
.Geopolítica e segregação
Temos que abordar a questão territorial tanto no sentido geográfico quanto no sentido geopolítico. É extremamente importante a gente analisar e avaliar o processo que consolidou esses territórios quilombolas e como nós chegamos ao que temos hoje. Na abolição da escravidão fomos empurrados para a Ilha porque era o local mais distante possível do centro do povoado que hoje é Araguatins. E por que ainda a gente tem tanta segregação? A gente precisa refletir sobre a falta de políticas públicas para os povos. Temos que refletir sobre como, em pleno 2019, a gente ainda está num território em que as pessoas não têm acesso a praticamente nada. Tem tudo por fazer na Ilha de São Vicente, em termos de qualidade mínima de infraestrutura, e tudo o que há aqui, fizemos nós próprios com nossos braços.
.Regularizações e despejos
O Quilombo Ilha de São Vicente é um território com processo de regularização bastante avançado, talvez um dos processos mais avançados do Tocantins. Nós temos uma RTID (Regularização de Território Quilombola do Incra) publicada; temos uma pesquisa antropológica consolidada e concluída em 2015. Agilizamos todo esse processo depois de um despejo que sofremos em 2010. Mas mesmo a gente tendo o reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, mesmo a gente tendo o RTID publicado, em 2016 novamente um juiz fez uma tentativa de retirada das pessoas da Ilha. Ou seja, a comunidade novamente sofreu tentativa de despejo. Diante da ordem de despejo expedida contra a gente, tivemos que construir mecanismos de resistência. Tiramos nosso tio Salvador (membro mais velho e líder da comunidade quilombola já falecido) que na época tinha quase 80 anos, da Ilha, porque a gente teve que tirar, e levava ele para um lugar, levava para outro, tentando ganhar tempo até conseguirmos suspender a liminar de despejo. Enfim conseguimos suspender a liminar incindindo sobre a SPU (Secretaria do Patrimônio da União). Como a Ilha de São Vicente é uma várzea, o território é caracterizado como terra da União. Sendo assim, nesse processo que tentou nos despejar, conseguimos provar que o reclamante era tão somente o invasor do nosso território. Mas para conseguirmos provar isso tive que fazer uma pesquisa no Ministério Público e estabelecer um diálogo com a SPU. Aí eu trouxe a SPU até o território, trouxe o Ministério Público na figura da Dr. Juliana, que era a Procuradora Federal responsável pelo nosso processo, trouxe também a Fundação Cultural Palmares, o INCRA nacional, na pessoa da Lidiana, que é antropóloga, e fizemos um debate com a comunidade. Então o nosso processo, a partir daquele momento, passou a pertencer também à SPU. Foi só em 2018 que a SPU publicou uma portaria destinando a terra da Ilha de São Vicente para a regularização do território. Hoje isso é um documento oficial. E na sequência a SPU encaminhou o documento para o cartório de Araguatins fazer o registro da terra no nome da nossa associação. Porém, como o INCRA não tinha consolidado a medição do território, apesar do quilombo corresponder a 100% do território da Ilha, o cartório se recusou a fazer o registro. Aí o INCRA fez essa medição em Janeiro de 2019, e nós estamos aguardando agora que o cartório faça o registro. Após o registro feito em cartório a terra estará no nome da associação. Feito esse trâmite o INCRA tem que voltar a incindir sobre o processo de despejo pra iniciar um processo de indenização das famílias que é o que nós chamamos de desintrusão. Os sujeitos indenizados serão aqueles sujeitos que foram indicados no nosso RTID lá na nossa pesquisa antropológica.
Segundo publicação de 24 de Setembro de 2019 no jornal Folha do Bico, “na última quinta-feira, 19, a Justiça Federal julgou ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal, garantindo à Comunidade Quilombola “Ilha de São Vicente” o direito à posse da terra em que vive, no município de Araguatins. Ao todo, 48 famílias aguardavam o julgamento da ação judicial que definiria seu direito de permanecer ou não na terra em disputa.
.Invasões e impactos
Uma outra problemática que enfrentamos no território são as invasões e grilagens que passamos a sofrer desde 2010 quando sofremos um trágico despejo. Muita gente vendendo, muita gente comprando terra. Gente comprando lote por 4 mil reais, por 2 mil reais, e nós sabemos muito bem que quem compra um lote nesse valor tem a compreensão de que está fazendo algo ilícito, porque a terra em uma Ilha não teria um valor tão baixo. E aí tem pessoas que estão se sujeitando a isso, estão construindo uma situação para dificultar. Muita gente também é atraída para o território na esperança de ser posteriormente indenizada em decorrência da construção de uma usina hidrelétrica no rio Araguaia e consequente inundação do território. Porque tem um projeto em curso na nossa região, que é a construção da hidrelétrica de Marabá e da hidrovia Araguaia-Tocantins. São dois empreendimentos que vão impactar nosso território. Tudo indica que esses empreendimentos serão realizados mesmo, porque são projetos de interesse do Governo Federal.
.Identidade e liderança
Nesse processo de luta pelo nosso território eu fui me descobrindo em relação à minha identidade. Talvez o meu fator identitário tenha se sobressaído em nível de liderança na comunidade devido à minha leitura de mundo, devido à forma como eu já encarava o mundo, por eu ser educadora. As pessoas têm uma referência muito em cima da figura da Fátima Barros enquanto liderança da comunidade, mas a gente vem trabalhando para ir quebrando essa coisa de liderança única. São necessárias várias lideranças. A família tem que assumir essa pauta. Por outro lado eu acho incrível essa coisa do corpo da gente enquanto ferramenta de resistência. Eu vejo o meu corpo muito como um espaço de resistência política. Eu estudei em Goiânia - sou formada pela UFG - e fiquei muito tempo em Goiás para conseguir concluir o curso devido a todas essas questões de falta de condições financeiras. Ao longo daquele período a minha identidade foi sendo desfacelada. Quando voltei para Araguatins eu alisava o cabelo, era uma pedagoga que entendia a importância da pedagogia de Paulo Freire, da pedagogia da autonomia, entendia a importância da educação para o povo do campo, entendia tudo isso, mas não entendia a necessidade de compreensão dos povos, não tinha a força e a dimensão do que são os povos. Aí, em 2010, após o despejo que sofremos da Ilha, comecei a me descobrir enquanto mulher negra, enquanto resistência. A partir do momento em que eu parei de alisar o cabelo, quando eu decidi valorizar isso que eu sou, o meu fator identitário, eu senti que de alguma forma consegui me fortalecer muito mais, tanto espiritualmente quanto demarcando meu espaço também. Me permiti que a identidade aflorasse, e isso é muito mais que o cabelo, é muito mais que o turbante, apesar desses sinais servirem para a comunicação e assim conseguir dizer: “nós estamos aqui, nós existimos”.
.Ampliação de perspectivas
Numa perspectiva mais ampla a identidade quilombola faz parte da identidade do país como um todo. De alguma forma, ao mesmo tempo que nossos ancestrais foram escravizados e os descendentes tiveram seus direitos negados, inclusive com o isolamento na Ilha, houve no quilombo o cultivo de uma riqueza surgida da própria cultura e das histórias de vida dentro deste território que é a Ilha de São Vicente, desse território que é Araguatins, desse território que é o Bico do Papagaio, desse território que é o Tocantins. Às vezes a gente não entende muito esse contexto porque até chegarmos a ser o estado do Tocantins a região passou por várias rupturas em nível geopolítico. Nesse nível trata-se aqui de uma identidade de rupturas. Já na perspectiva de continuidade vemos que Araguatins tem 150 anos e a minha família está na Ilha de São Vicente há 130 anos, então as histórias da minha família refletem a história da cidade, da região, e do Estado, e vice-versa. O Estado do Tocantins tem apenas 30 anos de história, mas temos que lembrar que nós, povos e comunidades tradicionais do Brasil, e consequentemente do Bico do Papagaio, estamos no Estado antes do Estado ser Estado, e a história dos nossos povos, a história do nosso território não é uma história de 30 anos. O Cerrado brasileiro tem 40 mil anos e a história de nossos povos é de 40 mil anos. Não dá para procurar apenas folhas aonde existe raiz. E o nosso povo é raiz, nós somos raiz. É assim que a gente se vê na defesa do nosso Cerrado, é assim que a gente se vê na defesa dessas águas. Nesse nível nossa luta é uma defesa do próprio planeta, porque é nele que nós vamos ter que viver e é nele que vão viver nossos filhos, nossos netos e nossos bisnetos, e se a gente não fizer alguma coisa por este território aqui, por este território Brasil e por este território planeta, não terá quem faça as nossas memórias. Mas eu vou escrever a minha história e isso é descolonizar, é resistir para existir. É isso que gente tem feito. Meu tataravô esperou, meu bisavô, meu avô, minha mãe, meus tios, meus irmãos mais velhos esperaram, mas eu, os meus sobrinhos, os meus netos, os meus bisnetos e os meus tataranetos não vão mais esperar nada, a gente vai lutar por tudo o que a gente sabe que é direito nosso. E o direito começa e perpassa pelo direito ao território e é aqui que a gente finca nossos pés e diz, eu não nasci em São Vicente, mas sou remanescente de São Vicente, a minha mãe nasceu aqui, a minha mãe esperou ter a oportunidade de ser escolarizada e ela não foi, porque ela não teve esse direito, porque não foi dado este direito a uma mulher negra, mas eu estou aqui e eu posso fazer e devo fazer as minhas próprias reflexões e eu tenho o direito de usar a minha fala para pontuar isso e fazer a defesa deste território, porque é assim que os netos dos meus netos e filhos do meus filhos, os meus tataranetos e os netos dos meus tataranetos também um dia construirão as nossas emórias.
.A importância das Histórias
Na comunidade temos várias crianças que estão no Ensino Fundamental, temos os alunos que estão no Ensino Médio e um grupo de vinte alunos que estão na Universidade. Conhecer e produzir as histórias do quilombo são ações muito importantes na construção desses sujeitos. Mas é importante, sobretudo, um trabalho de escuta com os mais velhos. Suas histórias correm o risco de se perder, porque a minha mãe hoje está fazendo 84 anos, aí tem outra tia minha com 87, tem o meu tio que tem mais de 70, tem outros tios de segundo grau que também estão na casa dos seus 70, 80 anos. Então eu gostaria muito que a gente pudesse produzir um trabalho de escuta com essa ancestralidade. Em outros momentos não pudemos fazer isso e, de 2018 para cá, nós perdemos três idosos em função da precariedade da saúde pública. Meu tio Salvador, que para a gente é nossa memória mais forte na luta pelo direito ao território, faleceu no ano passado. Toda a nossa história foi construída a partir do tio Salvador, da história de vida dele com o território, da relação de amor, da relação de bem viver dele com o território, e nós perdemos o tio por um câncer, porque não teve como a gente socorrer a tempo. Quando ficamos sabendo do diagnóstico, meu tio já estava quase indo a óbito. Depois, na sequência, nós perdemos também o tio Henrique, com 80 anos, e a tia Maria, que era a minha tia mais velha, com 90 anos. As memórias deles ficaram na família, ficaram com a gente, e eu não acho justo que a gente perca isso. Poder retratar as memórias deles é muito importante. Esses idosos viveram as culturas de todos os séculos (XIX, XX e XXI). Minha mãe, por exemplo, viveu a época de ouro da castanha, e essa história revela não só a construção de um processo identitário individual, como também a construção de uma identidade no sentido do coletivo.
.Mulheres quilombolas
Nós, mulheres negras, fomos treinadas para termos nossas histórias narradas pelos outros, então é importante sermos agora as narradoras das nossas próprias histórias. Minha mãe nasceu em 1935, e ela conta que as mulheres na sua época de infância e juventude, pela condição de gênero mesmo, não tinham acesso à escolarização formal, então minha mãe nunca foi para a escola. Ela tem dez filhos, dos quais oito são homens e duas mulheres. Minha mãe é quebradeira de coco. Quilombola quebradeira de coco sempre viveu nesse universo do campo, no universo do trabalho mais pesado, o qual foi destinado especificamente para nós, mulheres negras. Quando eu era criança ela me levava junto, quando ia quebrar coco, mas nunca me ensinava. Um dia perguntei: “quando a senhora vai me ensinar”? E ela respondeu: “eu quero que você estude”. Então eu tive possibilidade de estudar porque minha mãe, de alguma forma, criou as condições para isso. Ela quebrou o ciclo do destino da mulher negra. Esse ano a Letícia Queiroz, bisneta da minha mãe, acabou de concluir o curso de jornalismo e a tese dela retrata muito esse anseio que vinha da minha mãe desde 1935. Minha mãe mesma não teve esse tipo de oportunidade, mas agora sua bisneta produz um material acadêmico sobre a história da nossa própria família.
.A luta para além do território
Eu faço questão de alimentar a minha luta todos os dias e me indignar por cada um que embarcou no navio negreiro, por cada um que nasceu neste sistema de trabalho escravo e por cada um que até hoje ainda está no trabalho escravo. Porque nós não estamos falando de uma coisa que passou. Quando você fica sabendo que ainda há pessoas escravizadas neste país, isso há de ser dito, isso precisa ser trabalhado. Os novos profissionais, as pessoas que estão no debate, os que estão na academia, quem está no comércio, quem está em qualquer tipo de trabalho, precisa entender a gravidade disso e precisa se indignar. Por que a escravidão ainda parece normal para muita gente? A gente tem que se posicionar, porque é só nesta indignação que a gente vai poder fazer transformação social de fato. O que faz mudar essa realidade é a vontade política, é a gente falar, é a gente trabalhar os nossos para que eles não sejam omissos, para que não se assujeitem a isso, por mais que isso seja pesado. Cada um de nós que assume essa luta tem a vida todos os dias colocada em risco. Não é fácil morar nessa região, neste tensionamento, mas essa é a minha família e eu não viro as costas para a minha família. A gente tem obrigação, pela memória do meu tio Salvador, de continuar lutando; com a partida da tia Maria a gente tem a obrigação de continuar lutando; porque a gente não passa ser só a gente, a gente é a gente e a gente é eles também. Isso vem também da nossa origem Bantu. Para o povo Bantu a relação com a morte é diferente da relação que a sociedade comum brasileira tem. Os bantus acreditam que as pessoas continuam existindo nos seus espaços, no seu território, mesmo depois da morte.