HISTÓRIAS DA ILHA
Histórias de Fátima Barros
Filha de Cantídio e Vicência Barros
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Identidade
Minha família está aqui há mais de cento e quarenta anos.
Nós temos todo um contexto histórico profundo.
O território da Ilha de São Vicente, com suas histórias
e sua ancestralidade, está conectado com as questões da sua comunidade.
A comunidade é como se sempre existisse.
E ela existe antes do próprio território,
porque acima de tudo a comunidade é África.
É a nossa relação com a terra, com o universo, com o sagrado,
com as plantas, com o rio, com o solo.
A família Barros está aqui há séculos,
e a gente se projeta nessa história.
Temos uma relação de vida e morte,
do antes e do depois, com o próprio Cerrado.
E isso desafia a ideia da pretensa fragilidade da identidade do tocantinense.
O tocantinense tem um Estado de trinta anos,
mas nossa identidade tem quarenta mil anos.
E como a gente tem a percepção dessa identidade?
Essa percepção vem dos quarenta mil anos em que
existe o Cerrado.
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O Cerrado
O Cerrado pra gente é vida.
Suas plantas, a água, o solo, a medicina,
os saberes tradicionais, as rezas, as lendas,
O Cerrado é a forma da nossa cultura.
A lenda da cobra Norato é a lenda
da criação dos rios Araguaia e Tocantins.
Esses dois rios irmãos se fundem nisso
que é a grandeza da bacia Araguaia-Tocantins.
Uma das bacias mais importantes do Brasil.
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A lenda da cobra Norato
A lenda da cobra Norato conta a história
de uma indígena do povo dos Araras,
que há séculos vivia nessa região.
Todos os dias essa indígena sonhava em ser mãe.
E quando ela constituiu seu matrimônio,
ela sempre olhava pra deusa Lua e pedia:
“eu quero ter um filho”.
Mas chegava a próxima Lua
e ela ainda não estava gestante.
E ela novamente pedia:
“eu quero ter um filho”.
Mas não conseguia engravidar.
Um dia ela olhou pra deusa Lua,
na época de lua cheia e, encantada, disse:
“eu quero ter um filho,
nem que seja uma cobra”.
E na lua seguinte ela percebeu que estava grávida.
Sua barriga começou a crescer, crescer
e, no final dos nove meses esperando seu bebê,
ela procurou um pequeno lago
- porque naquele tempo ainda não existiam os grandes rios -
e ali teve o seu filho.
Mas de dentro de seu ventre
saem duas serpentes negras.
Uma serpente sai brava, forte, com os olhos de fogo.
Ela não cabia em si mesma.
Então ela corta o Cerrado,
e transforma-se no rio Tocantins.
A outra serpente, calma, tranquila,
com os olhos verdes, corpo prateado,
sai lentamente, corta o Cerrado,
e nasce o rio Araguaia.
E com esses dois rios viviam essas duas serpentes.
Uma, tranquilamente, vivia em suas águas,
e nas noites de lua cheia procurava
a pedra furada, ou a pedra grande,
onde é a Ilha de São Vicente,
e lá deixava sua carcaça.
E dessa carcaça saía um belo rapaz chamado Norato,
com os olhos verdes,
que ia pras festas,
e cantava, e dançava com as moças mais bonitas.
A outra cobra, do rio Tocantins,
forte, brava, selvagem, violenta,
ela não cabia em seu próprio rio,
e foi parar no rio Trombetas.
E indo pros lados de Mato Grosso, de Rondônia,
começa a matar tudo.
Virava barco, quebrava tudo,
matava pessoas, animais,
tocava o terror.
E todos pediam ajuda.
A voz das pessoas chegou até o rio Araguaia.
E falaram ao Norato o que estava acontecendo.
Mas o Norato, em sua vida tranquila,
só pensava em ser humano.
Ele queria ter uma alma.
Vivia dizendo que não queria mais
aquela vida de dualidade.
Porém ele decidiu ajudar o povo,
porque eram muitos problemas,
muito sofrimento pras pessoas naquele momento.
Aí o Norato segue, na sua forma de serpente,
vai até o rio Trombetas,
e lá ele encontra a outra serpente,
que era a sua irmã,
e eles brigam durante várias luas,
durante vários sóis e,
nessa briga, ele consegue sufocar
a cobra do rio Tocantins.
E do seu corpo sai todo o sangue
que tingiu de marrom a cor das
águas do rio Tocantins.
E a serpente é morta.
Norato fez tudo isso em sua forma de serpente,
mas na lua cheia seguinte
tornou-se novamente em lindo jovem humano.
Então procura um amigo e diz:
“eu preciso que você me ajude a sair desse encantamento.
Pra isso você tem que arranjar combustível, ir pra Pedra Grande,
jogar o combustível em cima da carcaça da serpente e pôr fogo”.
O amigo aceitou, pois a gente ajuda os amigos.
Mas quando ele viu o tamanho da serpente,
ficou tão apavorado, que teve três dias de febre.
Então a lua cheia se foi,
e com isso Norato voltou à sua forma de serpente.
Mas na lua seguinte, o amigo disse que estava preparado.
Ele conseguiu cinquenta litros de combustível
e foi pra Pedra Grande.
Chegando lá, joga todo o combustível
sobre a carcaça da cobra Norato, e põe fogo.
Aquilo dá um estouro tão grande que ele vai parar na lua.
Mas quando ele cai na Pedra Grande,
está lá o Norato, que o ampara.
A partir daquele dia nunca mais
o Norato voltou a ser uma serpente.
Norato viveu por muitos anos nesse território.
E por muitos anos ele dançou e cantou.
E quem me contou essa história
foi o meu tio Ademar,
que contou que a avó dele
dançou muitas músicas, muitas noites, com o Norato.
Então o Norato é uma história real, é uma lenda,
mas também é uma narrativa do território
da Ilha de São Vicente,
e dos povos de Araguatins,
e dos povos da nossa região
do Bico do Papagaio.
O rio Araguaia e o rio Tocantins hoje se juntam.
No local do encontro de suas águas,
de um lado você verá o rio Tocantins,
com a água avermelhada,
da cor do sangue da serpente que o criou,
e do outro lado o rio Araguaia,
com as águas esverdeadas,
da cor da lua e dos olhos
da cobra Norato.
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Memórias de tia Maria I:
os encantados do rio Araguaia
Tia Maria me contou que no passado
o rio era a estrada
por onde navegaram
o meu tataravô, Henrique Julião Barros,
por onde navegou meu avô
José Henrique Barros,
por onde navegou o meu pai e os meus tios,
a minha mãe, os meus irmãos e primos mais velhos.
Durante anos foi assim.
O travessão era o lugar mais perigoso do rio,
onde as canoas afundavam.
E quando naufragavam e as pessoas morriam,
elas encantavam naquele local.
Por isso nós temos encantados no rio Araguaia.
Tanto é que na Pedra Grande a gente escutava,
e escuta até hoje, galo cantar,
galinha, mugido de bois.
Você via máquina de costura novinha
em cima da pedra, e quando chegava lá,
não tinha nada.
Você escutava riso de criança,
conversa de pessoas.
Isso são os encantados que vivem
na Pedra Grande, na Pedra Furada.
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Memórias de tia Maria II:
o primeiro carro em Araguatins
E tia Maria falava:
Até pra votar em Marabá as pessoas iam nos barcos.
Meu avô fazia farinha,
e toda aquela farinha que ele produzia,
que era a farinha dos Henriques,
ele ia vender em Marabá levando nas canoas.
A farinha nos paneiros e um grupo de homens remando.
Essa era a vida.
Só que chegou um determinado momento
que as pessoas começaram a falar que ia ter estrada.
Até então só existia uma estrada que cortava os sertões,
que era aquela por onde vieram nossos ancestrais,
as pessoas escravizadas, usadas como forma de pagamento
de uma dívida, ao Vicente Bernardino, fundador de Araguatins.
Essa única estrada ligava São Vicente,
antigo nome de Araguatins, a Boa Vista do Padre João.
O restante dos caminhos era tudo pelo rio.
E de repente começaram a falar que iam construir estradas.
E teve uma grande festa.
Chamaram todos os barqueiros.
Depois daquela festa já começaram a construir a estrada
pra ligar Imperatriz, no Maranhão,
e pra ligar o Pará,
a essa região do Bico do Papagaio.
E com isso veio a notícia de que viria o primeiro carro a Araguatins.
Até então nunca tinha tido um carro aqui.
Apenas algumas ruas eram calçadas com pedra.
A maioria tinha muitas poças de lama.
E chegou o grande dia.
Veio uma balsa da região de Conceição, Pará,
trazendo dois jipes.
Esses jipes subiram o cais
e vieram aqui pra parte de cima da cidade.
E todas as famílias da região,
o povo do sertão, o povo da Ilha,
o povo do outro lado,
todos vieram pra esse grande acontecimento.
Aí os jipes corriam nas ruas
e as pessoas estavam todas nas portas das casas.
Minha tia diz que os jipes passavam
em cima das poças de lama
e espirravam o barro pra todos os lados,
e as pessoas corriam pra dentro.
Depois que passavam, todo mundo voltava
para as portas pra olhar de novo.
Novamente o carro voltava, jogava mais lama.
No final, aquelas pessoas,
que estavam vestidas com suas melhores roupas,
ficaram todas embarreadas com a lama
que os jipes jogaram em cima delas.
Por fim os donos dos jipes desceram para o cais,
colocaram os veículos na balsa
e foram se apresentar em Marabá e em outros lugares.
Até então ninguém tinha visto um carro.
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Memórias de tia Maria III:
energia elétrica
No passado, o meu bisavô era quem acendia o farol.
Ele fazia isso todo final de tarde.
Essa cidade não tinha energia elétrica.
Então o farol, que era a querosene,
como se fosse um grande abajur,
era acendido, erguido,
e iluminava a beira do rio,
para que não acontecessem acidentes com as canoas,
com os barcos, durante a noite.
Isso aconteceu dessa forma durante muitos anos.
Só que chegou a época dos primeiros prefeitos.
E eles decidiram trazer a energia elétrica para Araguatins.
Aí trouxeram o primeiro motor pra gerar energia.
Quando ele chegou teve uma grande comemoração.
Com esse motor foi possível ligar as luzes da cidade
e das residências por volta das dezoito horas,
e por volta das vinte e duas horas ele era desligado.
E ficava tudo silencioso pras pessoas dormirem.
Aí passava o dia todo sem energia,
e à noite voltavam a ligar o motor.
A minha tia vivia na Ilha de São Vicente,
e as pessoas diziam pra ela:
“Maria, mulher, tu precisa ir
na cidade pra ver as luzes”.
Só que ela, a tia Domingas e a minha mãe, Dona Vicência,
as três irmãs, quase não saíam de casa.
Por exemplo, elas não estudavam,
porque vale ressaltar que naquele período
apenas os homens tinham acesso à educação
- a minha mãe sempre conta do desejo que ela tinha de estudar.
As três irmãs olhavam pra cá, pra cidade,
e só viam as luzinhas piscando.
Um dos trabalhos delas era quebrar coco.
Aí quando chegou o dia da tia Maria vir vender o babaçu na cidade,
ela ficou pra dormir, pra poder ver as luzes.
E pela primeira vez ela viu tudo iluminado à noite.
E ela achou aquilo uma maravilha.
Ela olhava pras luzes e não conseguia parar de rir.
Chegava pertinho das lâmpadas pra colocar a mão
e não sentia o calor, e aquilo pra ela era o máximo:
ver um fogo que não queimava!
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Memórias de tia Maria IV:
a televisão
Tinha uma família rica em Araguatins,
os Rodrigues, que comprou a primeira televisão.
Até então ninguém sabia o que era aquilo.
E o povo falava pra minha tia:
“Maria, mulher, tu precisa ir na cidade
pra ver a caixa que fala.
Dentro da caixa tem as pessoas,
e elas falam, e você vê até as
pestanas baterem, de tão real que é”.
E ela ficava impressionada
com essa conversa e pensava:
“essas pessoas estão loucas,
porque não tem caixa que põe
gente dentro pra falar”.
Até que chegou o dia de vender cocos.
Quebrou os babaçus, juntou,
e foi pra cidade.
Ela vendeu o babaçu de manhã,
fez algumas compras,
e ficou na casa de um parente,
pra dormir em Araguatins
e voltar pra Ilha no dia seguinte.
Naquele tempo demorava umas
quatro horas de viagem até a Ilha
porque a canoa era a remo.
Então nesse dia ela ficou na cidade.
À noite, todo mundo de banho tomado,
com as melhores roupas,
foram pra casa desses Rodrigues,
pra ver a televisão.
Tia Maria ficou abismada.
porque quando chegou lá,
estava aquele mundaréu de gente
na porta desses Rodrigues.
E pela primeira vez ela viu uma
coisa totalmente ao contrário:
até então, todo mundo, no final da tarde,
tinha o costume de se sentar
nas calçadas, de frente pra rua,
com as costas voltadas pras casas,
vendo o movimento da cidade.
Nesse dia, porém, minha tia viu todo mundo
banhado, vestido, arrumado e perfumado,
sentado com as costas pra rua,
e de frente pra dentro da casa do seu Rodrigues.
Isso é de uma simbologia muito grande,
porque significa a percepção de tia Maria,
de como a televisão acaba com interação
entre as pessoas.